Pesquisa de anticorpos no líquido cefalorraquidiano (LCR) pode confirmar que o SARS-CoV-2 (sigla do inglês, Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2) invade o cérebro.
Uma série de casos com três pacientes atendidos em um hospital urbano nos Estados Unidos, que tiveram covid-19 (sigla do inglês, Coronavirus Disease 2019) grave confirmada por laboratório e encefalite mostrou que, apesar de apenas um deles ter leucócitos ou proteínas alteradas no líquido cefalorraquidiano, todos apresentaram evidências de anticorpos imunoglobulina M (IgM).
“A novidade em nosso estudo foi o fato de termos conseguido identificar a IgM, um reagente contra a covid-19 na fase aguda, no líquor desses pacientes, o que é um indicador direto de que eles tiveram SARS-CoV-2 no cérebro”, disse a primeira autora do estudo, Dra. Karima Benameur, médica neurologista e professora associada do Departamento de Neurologia da Emory University School of Medicine, nos EUA.
A Dra. Karima acrescentou que, apesar da pesquisa do líquido cefalorraquidiano ter indicado níveis normais de proteínas inflamatórias, isso não significa que o vírus não chegou ao cérebro e, portanto, para confirmar isso, ela recomenda que, quando possível, seja feita a pesquisa por IgM no líquido cefalorraquidiano.
O artigo foi publicado on-line em 02 de junho no periódico Emerging Infectious Diseases.
Impacto na função cortical do tronco cerebral
A covid-19 é caracterizada como uma doença respiratória e pneumonia viral com febre, tosse, falta de ar e, em casos graves, progressão para a síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA).
No entanto, existem poucas pesquisas sobre as complicações neurológicas da infecção por SARS-CoV-2, vírus que causa a covid-19.
Os casos que foram documentados são o de uma mulher de 31 anos com anemia falciforme que teve embolia pulmonar recente; um homem de 34 anos com hipertensão arterial sistêmica (HAS) e sinais de febre, falta de ar e tosse; e um homem de 64 anos também com hipertensão arterial sistêmica e sinais típicos de infecção pelo SARS-CoV-2.
Além da IgM, os pesquisadores analisaram as proteínas inflamatórias no líquido cefalorraquidiano e realizaram testes moleculares para SARS-CoV-2 por reação em cadeia da polimerase com transcrição reversa (RT-PCR, sigla do inglês, Reverse Transcription Time Polymerase Chain Reaction).
Dois pacientes tinham contagem de leucócitos e níveis de proteína normais. “A única razão pela qual podemos diagnosticá-los com encefalite por covid-19 é porque conseguimos medir a IgM no líquor”, disse a Dra. Karima.
Os neurologistas que avaliarem esses exames de líquor podem presumir incorretamente que não houve acometimento cerebral se o resultado for normal, disse a Dra. Karima.
A Dra. Karima enfatizou: “Só porque o RT-PCR no líquor foi negativo, não significa que o vírus não tenha chegado no cérebro.”
O teste de RT-PCR é um bom teste para alguns vírus, como o vírus do herpes, mas é ruim para esse novo coronavírus, disse ela.
Os três pacientes apresentaram encefalite, mas a paciente do sexo feminino também desenvolveu encefalomielite, ou seja, inflamação no cérebro e na medula espinhal.
Todos os pacientes apresentaram sintomas de acometimento da função cortical e do tronco cerebral no pico da doença neurológica.
Mecanismo pouco claro
Não está claro como o vírus invade o cérebro, disse a Dra. Karima. Alguns acreditam que pode ser através do nervo olfatório, o que pode explicar por que alguns pacientes perdem o paladar e/ou olfato.
A Dra. Karima explicou que pesquisas com animais mostraram que, quando o vírus é injetado nas fibras do nariz, ele pode chegar ao cérebro.
Especialistas não sabem a porcentagem de pacientes de covid-19 que têm o vírus no cérebro, disse a Dra. Karima.
Além disso, embora todos os pacientes da atual série de casos fossem afro-americanos, a amostra é muito pequena para determinar se o envolvimento neurológico é mais prevalente nessa população de pacientes, disse a Dra. Karima.
“De maneira geral, um mau prognóstico foi relatado com mais frequência em afro-americanos, mas não sabemos muito sobre as complicações neurológicas. A amostra não foi suficiente para que possamos fazer essa análise estatística.”
Apesar dos três casos terem sido em pacientes relativamente jovens, novamente, essa não foi uma amostra grande o suficiente para determinar se o acometimento cerebral é mais provável em pacientes mais jovens, disse a Dra. Karima. Ela contou que tem dados de mais pacientes e que há uma maior variação na idade.
Os dois pacientes do sexo masculino da série atual se recuperaram e receberam alta hospitalar. A paciente do sexo feminino faleceu.
A anemia falciforme pode ter complicado o desfecho desta paciente. Ter hipóxia devido a uma doença como pneumonia, sobreposta a anemia falciforme, pode dificultar a oxigenação dos tecidos, disse a pesquisadora.
Ela pediu a todos os médicos tratando pacientes com covid-19, mesmo aqueles sem sintomas clássicos, “que façam perguntas sobre cognição”.
Efeito direto incerto
Em comentário para o portal de notícias Medscape, o Dr. Andrew Wilner, médico e professor-associado de neurologia do University of Tennessee Health Science Center, nos EUA, disse que os relatos de complicações neurológicas associadas a covid-19 “continuam a se multiplicar” à medida que os médicos ganham mais experiência no tratamento desses pacientes.
“Até o momento, a maioria das complicações neurológicas, se não todas, pode ser explicada por alterações inflamatórias como trombose ou tempestade de citocinas, além de causas pós-infecciosas, como a síndrome de Guillain-Barré”, disse o Dr. Andrew.
Outras complicações parecem “inespecíficas” e “relacionadas com doenças sistêmicas agudas e graves, como encefalopatia isquêmica hipóxica, devido a insuficiência respiratória”, como aconteceu nesses três casos, disse ele.
“Se os sintomas pouco comuns, como perda do olfato, são causados por lesão neuronal direta ou inflamação, ainda não foi determinado.”
O Dr. Andrew disse que, embora os anticorpos contra o SARS-CoV-2 estivessem presentes no líquido cefalorraquidiano dos pacientes do estudo, o RNA do SARS-CoV-2 não foi detectado.
“Desta forma, este artigo é consistente com observações anteriores que sugerem que o SARS-CoV-2 pode causar lesão neurológica por mecanismos secundários, mas não é especificamente neurotrópico. As pesquisas sobre esse importante assunto estão em andamento.”
O Dr. Andrew Wilner relatou ser consultor médico da CVS/Health e receber royalties de “The Locum Life: Guia do Médico para Locum Tenens”.
Emerg Infect Dis. Publicado on-line em 02 de junho de 2020. Texto completo
Com informações de ” Pesquisa identifica anticorpos de coronavírus no líquor – Medscape – 17 de junho de 2020.”