A Trajetória de Ágota Kristof: Um Olhar Sobre a Construção da Identidade Literária em Contexto de Exílio

A obra “A analfabeta” de Ágota Kristof, analisada por Afrânio Mendes Catani, oferece uma perspectiva aprofundada sobre a complexa relação entre linguagem, exílio e a formação da identidade de uma escritora. O relato autobiográfico, que se desenrola em 56 páginas divididas em onze capítulos, aborda as experiências vividas por Kristof desde a infância na Hungria até seu estabelecimento como autora na Suíça.

A infância de Kristof foi marcada pela leitura voraz, hábito que desenvolveu desde os quatro anos de idade, consumindo qualquer material impresso que lhe chegasse às mãos. No entanto, essa paixão pela leitura era frequentemente criticada por vizinhos e amigos, que a consideravam uma ocupação inerte e preguiçosa. Aos 14 anos, sua vida sofreu uma drástica mudança ao ser internada em um colégio que, conforme suas próprias palavras, assemelhava-se a uma instituição total, misturando características de quartel, convento, orfanato e reformatório. Nesse ambiente, a escrita tornou-se seu refúgio e sua forma de lidar com a dor da separação e a perda da liberdade.

A mudança para a Suíça, após a fuga da Hungria em 1956, representou um novo desafio linguístico e cultural para Kristof. O francês, uma língua inicialmente desconhecida, tornou-se para ela uma “língua inimiga” por ameaçar sua língua materna. Apesar de ter vivido e escrito em francês por décadas, Kristof admitiu que nunca o dominou completamente, necessitando do auxílio de dicionários e enfrentando dificuldades em se expressar sem erros. A autora encarou a escrita em francês como uma “necessidade” e um “desafio de uma analfabeta”, revelando a complexidade de se construir em uma nova língua e cultura. Sua perseverança a levou a se matricular em um curso de verão na Universidade de Neuchâtel aos 27 anos para aprimorar o francês, obtendo uma certificação de estudos franceses com ótima avaliação dois anos depois.

A jornada de Kristof para se tornar escritora foi gradual e desafiadora. Inicialmente, suas peças de teatro escritas em francês foram encenadas por grupos amadores e, posteriormente, sua carreira radiofônica teve início com a produção de cinco de suas peças pela Rádio da Suíça francesa entre 1978 e 1983. O reconhecimento internacional veio com a publicação de seu segundo romance, “O grande caderno”, aceito por Gilles Carpentier das edições Seuil e posteriormente traduzido para 17 idiomas. A experiência de exílio, embora lhe trouxesse conforto material, foi descrita como “pesada”, com a perda superando os ganhos, resultando em um “preço alto demais”. O relato de colegas húngaros que se suicidaram ou retornaram à Hungria para enfrentar a prisão ilustra a dura realidade e o impacto psicológico do exílio. A obra de Ágota Kristof, portanto, transcende o mero relato autobiográfico, configurando-se como um estudo de caso sobre a resiliência humana e a reconfiguração da identidade em face de adversidades sociopolíticas e linguísticas.

Referência:

CATANI, A. M. A Analfabeta. Open Minds International Journal, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 252-256, Jan./Abr. 2025.

Centro de Pesquisa e Análises Heráclito

Neurociência / Biologia / Psicologia / Psicanálise / Genômica

Tel.: +351 939 895 955 / +55 21 999 989 695

contato@cpah.com.br