A Realidade do Autismo: Transtorno, Diversidade ou Categoria Social?

O autismo tem sido historicamente conceituado como um transtorno biológico do desenvolvimento neural, passível de investigação pelas ciências biomédicas. No entanto, a definição do autismo tem se mostrado notoriamente difícil, e uma crescente crítica tem questionado sua validade como classificação psiquiátrica. A falta de utilidade biomédica e a heterogeneidade intrínseca do autismo, que se manifesta de maneira única em cada indivíduo, desafiam a ideia de uma base biológica ou psicológica unificada. Esse cenário levou alguns pesquisadores a sugerir o abandono do conceito de autismo.

A busca por uma essência biológica ou psicológica que defina o autismo tem falhado em fornecer um traço único que explique a maioria ou a totalidade dos casos. Pesquisas genéticas e neurológicas demonstram que centenas de genes podem contribuir para o autismo, com a combinação de fatores sendo diferente em cada pessoa. Essa “problemática da heterogeneidade” sugere que o autismo não é um fenômeno unificado, mas um “conjunto de condições distintas, muitas vezes comórbidas, mas de fato independentes”.

Em resposta a essas dificuldades, o movimento da neurodiversidade propõe que o autismo não seja visto como um transtorno mental, mas sim como uma manifestação natural da diversidade neurológica humana. Os defensores dessa visão argumentam que grande parte do sofrimento e das desvantagens associadas ao autismo decorre da marginalização e da opressão, e não de uma patologia inerente. Nessa perspectiva, o autismo é considerado uma identidade política, análoga a classificações como “negro” ou “gay”, que, embora não tenham validade biológica, possuem realidade e valor por razões políticas e éticas.

Uma abordagem que se alinha com a visão da neurodiversidade, mas evita reduzir o autismo a uma mera identidade política, é a de uma “coletividade serial”. Segundo essa teoria, proposta pela filósofa feminista Iris Marion Young, o autismo pode ser compreendido não por uma essência interna ou uma identificação compartilhada, mas por uma relação comum com fatores sociais e materiais externos. As pessoas autistas formam uma coletividade serial porque compartilham uma relação com estruturas e normas sociais que continuamente produzem e reproduzem a desvantagem autista, como ambientes de trabalho hiper-sociais e normas que valorizam características neurológicas típicas. Essa perspectiva permite reconhecer a legitimidade da voz autista, ao mesmo tempo que inclui aqueles que não podem ou não conseguem se identificar como autistas, superando assim as limitações da visão de “identidade política”.

A realidade do autismo, portanto, não reside em uma patologia biológica ou psicológica, mas em sua natureza como uma categoria social. A sua coerência e realidade se baseiam no fato de que indivíduos autistas compartilham uma relação específica com as condições sociais e políticas que causam suas desvantagens. Essa compreensão do autismo como uma coletividade serial se mostra a mais viável metaforicamente, fornecendo uma base sólida para a defesa e a promoção da aceitação e da inclusão, sem depender de uma essência científica que a evidência atual não sustenta.

Referência:
Chapman, R. (2020). The reality of autism: On the metaphysics of disorder and diversity. Philosophical Psychology, 33(6), 799–819. https://doi.org/10.1080/09515089.2020.1751103

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