A intertextualidade na era digital: (re)construção de sentidos em obras clássicas

A intertextualidade, um fenômeno semântico crucial na produção e compreensão textual, tem experimentado transformações significativas com o advento da cultura digital. Fundamentada na teoria dialógica da linguagem de Bakhtin, que postula que nenhum enunciado existe em isolamento, a intertextualidade demonstra a natureza relacional dos textos, evidenciando que a compreensão de um texto implica o reconhecimento de suas conexões com discursos anteriores ou simultâneos. A digitalização dos textos e a convergência midiática intensificaram esse fenômeno, promovendo novas formas de hibridização discursiva e a reconfiguração de clássicos literários em diversos suportes e linguagens. A hipertextualidade, multimodalidade e interatividade das plataformas digitais permitem que os textos dialoguem e se transformem continuamente, ressignificados pelos leitores-autores da era digital, o que exige novos perfis de leitores, os hiperleitores.

O estudo da intertextualidade no contexto digital aborda a releitura de textos clássicos por meio de aspectos linguístico-discursivos da linguagem digital. Metodologicamente, pesquisas nessa área frequentemente adotam uma abordagem qualitativa e exploratória, utilizando o método bibliográfico. O corpus de análise é frequentemente composto por textos extraídos de páginas ou plataformas de circulação digital de acesso livre. A análise enfoca a relação dialógica entre os textos-fonte e suas releituras, considerando os aspectos da linguagem digital que vão além de meros vínculos referenciais, constituindo um processo semântico e dinâmico que subverte e amplia os horizontes interpretativos das obras clássicas. Essa ressignificação se relaciona com os códigos culturais contemporâneos e posiciona o leitor como coautor na cadeia de produção textual-discursiva, na interação entre textos clássicos e releituras oriundas da cultura digital, midiática e virtual.

Exemplos concretos ilustram a manifestação da intertextualidade na cultura digital. A releitura de “A Última Ceia” de Leonardo da Vinci, substituindo personagens humanos por robôs, demonstra um deslocamento semântico-discursivo que transforma a cena em um discurso sobre a desumanização na era da inteligência artificial, mantendo a composição visual da obra original enquanto insere um novo debate. Similarmente, a “Mona Lisa” de Leonardo da Vinci, um ícone da arte ocidental, é frequentemente ressignificada na cultura digital, como na versão onde seu olhar é fixado em um celular, alterando a carga semântica da obra e criticando a hiperconectividade e a dispersão da atenção na era digital. Outro caso é “A Persistência da Memória” de Salvador Dalí, onde os relógios derretidos são substituídos por celulares, introduzindo uma camada de significação ligada à hiperconectividade e à aceleração do tempo contemporânea. Por fim, “O Grito” de Edvard Munch, que transmite angústia, pode ser ressignificado em formato LEGO, padronizando as formas e atenuando o impacto emocional, o que reflete a estetização da arte na cultura digital e sua inserção em um contexto de ludicidade.

Essas releituras digitais, embora tornem as obras mais acessíveis e interativas, levantam questionamentos sobre seus impactos culturais e sociais. Surge a indagação se contribuem para a democratização do acesso à cultura ou se reforçam uma lógica de consumo acelerado que esvazia os sentidos mais profundos das obras. Além disso, a questão da apropriação cultural e da autoria se torna relevante: até que ponto essas transformações respeitam o contexto histórico das obras, e em que medida podem ser vistas como deturpações ou simplificações excessivas?. O equilíbrio entre a inovação e o respeito ao legado cultural apresenta-se como um dos grandes desafios na interpretação das releituras digitais.

Referência:

ARAÚJO, A. L. S.; SILVA, S. A. O. C.; LIMA, F. R. A intertextualidade como fenômeno semântico no processo de produção e compreensão Textual: a (re)construção de sentidos, do clássico ao digital. Open Minds International Journal, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 174-190, jan./abr. 2025.

 

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