Autor: Dr. Fabiano de Abreu Agrela Rodrigues
As primeiras manifestações da doença de Alzheimer revelam uma quebra funcional seletiva, marcada por uma assimetria entre a capacidade de consolidar novas memórias e a preservação parcial de conteúdos antigos. Essa assimetria é o ponto de partida para uma leitura mais precisa da falência cortical que caracteriza o início do quadro clínico. A conservação de informações remotas ao lado da dificuldade de retenção recente não representa um paradoxo — é consequência direta da topografia da degeneração sináptica, da seletividade bioquímica envolvida e da vulnerabilidade diferencial entre estruturas centrais e associativas.
O hipocampo, particularmente o setor CA1 e o giro dentado, sofre redução na densidade sináptica e acúmulo de proteínas mal conformadas, com destaque para os oligômeros de beta-amiloide e as formas hiperfosforiladas da proteína tau. Essas alterações comprometem o circuito trissináptico e reduzem a eficiência da neurogênese local, processo sustentado, em parte, pela modulação colinérgica que depende da ação da acetilcolina liberada pelos neurônios do núcleo basal de Meynert. À medida que a falha colinérgica se instala, o declínio na codificação da memória episódica recente torna-se mensurável e constante.
A acetilcolina, por sua vez, deriva da colina obtida via transporte ativo dependente de sódio, processo acoplado ao metabolismo energético mitocondrial. A síntese da acetilcolina a partir da colina e acetil-CoA, sob ação da colina acetiltransferase, já mostra declínio nas fases iniciais. Essa falência bioquímica é mais do que um marcador: é parte da origem funcional do processo degenerativo. A redução de acetilcolina atinge, com maior impacto, o hipocampo e o córtex entorrinal, regiões de entrada do fluxo de informação para consolidação mnêmica. A queda progressiva da disponibilidade sináptica desse neurotransmissor leva a uma ineficiência de integração da informação contextual e espacial.
Enquanto isso, regiões associativas de memória consolidada, como o neocórtex temporal lateral e parte do parietal posterior, mantêm suas conexões estáveis por mais tempo. As memórias de longa duração, já transferidas e estabilizadas nesse circuito, continuam acessíveis. Esse fenômeno reforça a aparência de lucidez nos relatos de vida remota, o que contribui para um atraso no reconhecimento clínico do quadro. O indivíduo perde a ancoragem no tempo presente, mas ainda sustenta uma narrativa coerente sobre fatos antigos, pois o acesso ao conteúdo não depende mais do hipocampo funcional.
Outro ponto estrutural relevante está no córtex cingulado anterior, especialmente nas camadas III e V, cuja função de mediação entre a atenção executiva e a integração afetiva passa a operar de forma descoordenada. A disfunção dessa área impacta o filtro de relevância informacional e a coerência lógica, prejudicando tanto a manutenção da memória de trabalho quanto o julgamento situacional. Ao lado disso, o córtex pré-frontal dorsolateral, que integra os dados recebidos com base em lógica e planejamento, perde conectividade funcional com os sistemas de memória episódica. A desintegração sináptica entre essas áreas compromete o funcionamento executivo mesmo antes de manifestações comportamentais explícitas.
O declínio funcional não ocorre em linha reta. Há variações moduladas por sistemas neurotransmissores secundários, como dopamina e noradrenalina, que também sofrem impacto. A dopamina, cujo precursor imediato é a L-DOPA derivada da tirosina — um aminoácido obtido via alimentação e convertido pela ação da tirosina hidroxilase — tem papel relevante na regulação motivacional e na atenção sustentada. A queda dopaminérgica no circuito mesocortical influencia negativamente a capacidade de manter metas de curto prazo, o que agrava os déficits iniciais, mesmo que a memória consolidada ainda permaneça disponível.
Ao longo desse processo, a conectividade entre sub-regiões é tão crítica quanto as alterações moleculares. A comunicação entre hipocampo e córtex pré-frontal medial, via fascículo uncinado, apresenta redução de integridade estrutural. Os exames de tensor de difusão já demonstram essa desconexão nas fases iniciais. Esse achado reforça a leitura de que a falência do Alzheimer não reside apenas na morte celular, mas na perda progressiva de conectividade funcional, sincronicidade oscilatória e eficiência bioquímica da transmissão sináptica.
Diante disso, a abordagem clínica deve abandonar a leitura simplista de que os sintomas surgem de forma súbita. A doença instala-se como uma reorganização degenerativa silenciosa, cujas raízes estão nos níveis moleculares da transmissão e nos padrões de conectividade entre subestruturas cerebrais específicas. A leitura superficial dos sinais iniciais compromete o tempo de intervenção. A compreensão profunda dessa dinâmica, que envolve desde a síntese de neurotransmissores até a comunicação inter-regional, é a única via possível para intervenções precoces e estratégias preventivas baseadas em neurociência aplicada.